Estranha receita
Dr. Lemos se formara em Medicina na Bahia. No Ceará, não formavam ainda médicos. Só criaram o curso na década de 1950. Persistente, no entanto, o velho Tomaz de Lemos, seu pai, botou na cabeça que tinha que formar um filho na ciência de Hipócrates. E lá vai o rebento se largar da vilazinha, ruída pelo esquecimento, distrito de Lavras, em busca de estudos em Salvador. E se foi, e se formou. Voltou à sua São José que depois virou Mangabeira, com um anel no dedo e montado em sonhos de salvar vidas. Foi o primeiro médico do lugar. Coisa de deixar muitos de queixo caído.
Todos os fazendeiros da região queriam ver uma filha casada com aquele bom partido. Ele, no entanto, foi se engraçar de moça da cidade vizinha, Várzea Alegre. Moça bonita, prendada, logo, logo, São Raimundo, padroeiro, estava purificando o enlace. Foi assim que o novo médico, guiado pelo amor, viajou com malas e cuias os 20 quilômetros que separam as duas comunas e botou consultório na vizinha cidade. Por lá, ficou a vida toda em salvação de doentes e construindo exemplar família.
Clínico geral, Dr. Lemos curava de espinhela caída a constipação, de ferida braba a úlcera estomacal, sem contar centenas e centenas de partos assistidos e alguns cesarianos quando outro jeito não havia. Ficou quase tão famoso quanto o santo padroeiro, a tal ponto de ser assediado pelo olho grande da política, coisa que rejeitou em nome da salvação dos corpos e lenitivo das almas. Era médico para todas as situações e o povo passou a ter São Raimundo na matriz e Dr. Lemos na receita.
Gostava de fazer seus passeios pela manhã, a pé, em nome da saúde e da saudade, a observar aqueles baixios de arroz que circundavam a cidadezinha. Também apreciava o canto dos passarinhos, que de tão forte, deu nome à cidade, Várzea, dos arrozais; Alegre, dos passarinhos. Nessas andanças matutinas, dava conselhos de saúde, aconselhava dietas e até recomendava visitas a seu consultório quando o caso era grave. O povo do lugar tinha certa veneração pelo seu trabalho.
Numa certa manhã, ao passar frente à casa de pequeno agricultor, foi interpelado pelo morador cuja mulher padecia de moléstia que as meizinhas não tinham resolvido. Antes de ver a doente que estava ainda se compondo no quarto do casal, foi presenteado com um jerimum vingado no quintal e uma xícara de precioso moca pilado na rapadura e acrescido de algumas sementes de manjerioba nascida no terreiro. Aquele café pretíssimo, forte e fumegante foi ingerido pelo médico muito mais por educação.
Finalmente liberada a alcova para ingresso e vistoria da doente, verificou-se que o caso era de gravidade. Não adiantava mais chá de quebra-pedra, casca de aroeira, nem gemada de ovo de galinha do terreiro. Era caso urgente de medicamento de farmácia. Era caso que ainda tinha jeito. Difícil, no entanto, era levantar aquela senhora de sua cama e levá-la ao pequeno posto de saúde do lugar. Tinha que salvá-la ali mesmo, com medicamentos fortes.
Dr. Lemos como andava desprevenido de papel e lápis, pediu ao marido da doente que lhe fornecesse material para que fosse lavrada a receita. Pediu o papel, mas não havia papel naquela casa. Também não havia lápis nem caneta. Difícil estava de escrever uma receita para que o marido fosse comprar o remédio na farmácia. Diante de tão constrangedora situação, já com o dono da casa devidamente encabulado, o nosso médico teve inusitada ideia.
Havia uma janela encostada à parede, pronta para ser posta no seu lugar, coisa que estava sendo feita pelo dono da casa na chegada do médico. Dr. Lemos vendo aquela janela nova e plana, pediu ao seu anfitrião um pedaço de carvão do seu fogão a lenha, o que foi providenciado com rapidez. O médico inclinou-se, e ali mesmo, na frente da família, escreveu, nas tábuas, sua receita, para ser levada ao farmacêutico. Daí a pouco o dono da casa sai em busca do centro da cidade com a janela na cabeça à procura do milagroso remédio.
Na farmácia, mesmo assombrado, o balconista só aceitou aquela extravagante receita, porque reconheceu a assinatura do médico. O remédio foi vendido, a janela foi devolvida ao proprietário, e pregada na sua casa, e a mulher escapou da doença. Consta ainda hoje nas memórias da região que aquele foi o único caso de uma receita escrita nas tábuas de uma janela.