Sentidos - Manoel Fernandes
A casa dos meus avós tinha um cheiro de jasmim. Esta lembrança é tão marcante que, onde quer que eu esteja, o cheiro dessa flor me enche de imagens familiares. Vejo a cozinha da casa com seu forno a lenha, a grande sala de várias portas, os quartos à meia parede, o corredor largo que dá acesso a muitos lugares, a portinhola da entrada como duas grandes asas, os jasmineiros no jardim cercado pelo muro baixo e o pequeno portão de ferro que abre para a praça de uma infância repleta de janeiros maravilhosos.
E por falar em praças sempre gostei mais daquelas que, repletas de gente, fazem os meus sentidos auditivos barulharem. Os duelos dos cantadores de viola, as orações dos evangélicos, os anúncios das vendedoras de miudezas, o homem da cobra, a militante de esquerda, a conversação animada dos transeuntes como se fossem pingos de água na grande onda sonora que faz a praça reverberar como um sino gigante.
E o que dizer, por pensar no toque do sino, daquilo tudo que me toca o corpo e que o meu corpo toca? À superfície da pele, sentindo as águas do mar ou dos rios, massagear a argila para compor inúmeras formas, manipular tintas diversas com as mãos cheia de cor no papel monocromático, sentir o beijo quente do vento no rosto, andar com os pés nus sobre o chão coberto de folhas. Coisas assim que fazem a epiderme ler o universo nos dias em que deixo o interior da casa e caio no mundo e volto a brincar com minha prima matéria.
Matérias primas, primeiras e familiares, que encontro em um fantástico balé de cores de formas que a visão capta diferentemente de outras culturas. Pontes suspensas sob arames de fino aço, casas circulares da taipa e palha, telhados triangulares para que a neve escoe. Tempos diversos nas formas das coisas e nas tintas das épocas, vitrais multicolores , janelas articuladas, beirais. Coisas de ferro, gesso, concreto protendido, prédios imensos, o cario baixo. Isso tudo que baralha a visão e me faz viajar para às épocas mais remotas e imaginar o futuro, como se essa linguagem visual me detivesse diante dos objetos e me pusesse adiante deles.
Já das viagens o que costumo lembrar é do gosto da comidas e bebidas locais e a minha boca saliva diante dessas lembranças que provam o sabor de frutas endêmicas e dos pratos desconhecidos. Arroz com piqui, maniçoba, açai com farinha, feijão tropeiro, acarajé, pamonha, polenta, quentão, cachaça do brejo, vinho de cajú. E assim, em minha boca posso nomear o gosto dos lugares por sua brasa de pimenta ou a maciez de suas frutas carnudas.
Essas coisas todas que mexem com meus sentidos se misturam quando entro em contato com o mundo, estabelecem códigos de afetividade , desenham seus traços sensoriais dentro de mim. A isso tudo posso denominar de paisagem e repaginá-las para saber de mim sempre que preciso delas.
Manoel Fernandes (USP)
(Nande neto de Zé Odimar e Balbina)