Saudades do meu pai... - Do livro "Camisa nova, seu doutor "
"Manhãs...
Eu sempre as vejo da varanda das lembranças. A minha infância está impregnada de manhãs frescas e cheias de claridade. Minha alma quando se isola de mim e se recolhe ao labirinto, faz com freqüência nas manhãs, após noites mal-dormidas.
Pode ser o jeito como o sol nasce, entre nuvens, no contexto do céu. Ou a textura da brisa, o perfume que traz, a forma como me acaricia. Ou mesmo o canto do pássaro, ou a tristeza que se me enrosca como um gato, buscando conforto...Vejo-me então transpondo o portão, como o de Alice, e reencontrando esboços de sensações que um dia tive.
As manhãs me lembram o verde que nasce, após noite de chuvas e tempestades. As manhãs são as crianças despertas, a adolescente que se olha ao espelho, sacudindo os cabelos e decifrando o eterno, são os rastros dos amores noturnos no corpo redivivo, nos lençóis desarrumados, é a nudez do corpo feminino saindo do banho fresco e perfumado.
Elas nascem diferentes quando são os galos que as acordam, elas são puras e angelicais quando banhadas pelo orvalho, ou quando nas invernadas brotam da terra fertilizada, da terra agradecida.
Sentam-se na rede de sol a sol, serra a serra, balançando-se ao sabor do vento, tocando nuvens...convidando-nos a nada ser, a nada fazer...
Fui envolvido pelas luminosas manhãs do sertão, coloridas de branco, azul e dourado, que preencheram minh’alma. Depois, fui abandonado pelas mesmas manhãs, quando o sol do meio-dia as afugentou. Chorei quando as busquei e não as encontrei nas tardes vastas, nos solitários crepúsculos, nas incontáveis noites que se sucederam como uma corrente de dores e de alegrias, cujos elos lembravam o relógio que não parava, a areia se derramando na ampulheta do tempo, as gotas se sucedendo na torneira aberta da vida.
Significou que fui, uma vez na vida, de forma plena? Significou que a partir de então foi em suma a caminhada de perdas? A vida seria assim, alçada do céu e rolando pela encosta de encontro ao nada absoluto, ao último minuto em que já estaríamos despidos de tudo? Desmanchados? Nus?
Encontrei o meu pai na laje fria do necrotério, reconheci o sapato simples, a roupa lisa, um tanto frouxa, parecia ainda menor do que era, naquele recinto apertado e sem vida. Hoje, acordei pensando nele, ou talvez tenha sido a manhã de luz que o trouxe. Chegou pela estradinha branca, eu pude vê-lo desde que emergiu ao pé da ladeira de muitas árvores, e se aproximou a trote no cavalo castanho. Carregava chapéu de feltro e vestia-se em terno branco, de brim. Como era bonito o meu pai! Sentamo-nos na varanda de sombra fresca e carinhoso vento e miramos as plantações em silêncio. Estava triste, como sempre, mas somente um tantinho assim, que não lhe apagava o brilho...
Um carro passa súbito e me arranca dos devaneios. Sorrio agradecido para o vento e para a manhã que já se adianta. Outras virão e trarão de novo o meu pai.
(José Bitu Moreno)